Este texto de Lukaku é tão emocionante que não tem como não virar fã do belga


A Bélgica, seu país natal, tem duas línguas oficiais: francês e holandês. Além destas, o atacante do Everton também fala inglês, espanhol e português, e ainda entende alemão e o dialeto de sua família do Congo.

Conheça mais sobre a história do atacante belga

Com o objetivo de dar aos jogadores espaço para contarem detalhes íntimos de sua história pessoal e profissional, o The Players Tribune ficou conhecido no mundo todo. Hoje você confere a história impressionante e comovente de Romelu Lukaku.

Eu lembro exatamente do momento em que estávamos sem dinheiro. Eu consigo visualizar o rosto da minha mãe olhando para a geladeira.

Eu tinha 6 anos, quando cheguei em casa para almoçar durante o intervalo na escola. Minha mãe tinha a mesma coisa no cardápio todo dia: pão e leite. Quando você é criança, você nem pensa nisso. Mas eu acho que é o que poderíamos pagar.

Então, em um determinado dia, eu cheguei em casa, entrei na cozinha e vi minha mãe com uma caixa de leite perto da geladeira, como normalmente. Mas, dessa vez, ela estava misturando algo com isso. Eu não entendi o que estava acontecendo.

Então, ela trouxe meu almoço e sorriu para mim como se tudo estivesse bem, mas eu percebi logo que o que estava acontecendo.Ela estava misturando água com leite. Nós não tínhamos dinheiro suficiente para o leite durar a semana toda.

Nós não tínhamos nada. Não éramos só pobres, não tínhamos nada.

Meu pai foi um jogador profissional de futebol, mas ele estava no fim da carreira, e o dinheiro já tinha acabado. A primeira coisa a “ir embora” foi a TV a cabo. Acabou o futebol, acabou o “Match of the day” (programa sobre futebol). Sem sinal.

Então, eu chegaria em casa à noite e as luzes estavam apagadas. Sem eletricidade por duas ou três semanas às vezes.

Aí eu queria tomar um banho, e não tinha água quente. Minha mãe pegava uma chaleira com água, aquecia no fogão e eu ficava com uma caneca para derrubar a água quente em mim e poder tomar banho.

Algumas vezes, a minha mãe precisava pagar fiado o pão da padaria da rua. Os padeiros conheciam eu e meu irmão, então eles deixavam pegar um pouco do pão na segunda-feira e pagar na sexta-feira.

EU SABIA QUE ESTÁVAMOS COM DIFICULDADES. MAS QUANDO ELA ESTAVA MISTURANDO ÁGUA COM LEITE, EU PERCEBI QUE JÁ ERA, ENTENDE O QUE EU DIGO? ESSA ERA A NOSSA VIDA.

Eu não disse uma palavra. Eu não queria vê-la estressada. Eu só comi meu almoço. Mas eu juro por Deus, que fiz uma promessa a mim mesmo. Foi como se alguém tivesse estalado os dedos e me acordasse. Eu sabia exatamente o que tinha que fazer e o que ia fazer.

Eu não poderia ver minha mãe vivendo assim. Não, não, não. Não poderia ver isso.

As pessoas no futebol adoram falar sobre “força mental”. Bem, eu sou o cara mais durão que você vai conhecer. Porque eu lembro de sentar no escuro com meu irmão e minha mãe fazendo a nossa prece e pensando, acreditando, sabendo… que ia acontecer.

Eu guardei minha promessa só para mim por algum tempo. Mas alguns dias eu chegaria em casa da escola e via minha mãe chorando. Então, finalmente, um dia, eu contei a ela.

“MÃE, AS COISAS VÃO MUDAR. VOCÊ VAI VER. EU VOU JOGAR FUTEBOL PELO ANDERLECHT, E VAI ACONTECER LOGO. EU E MEU IRMÃO VAMOS NOS DAR BEM. VOCÊ NÃO VAI PRECISAR SE PREOCUPAR”.

Eu tinha seis anos. Perguntei ao meu pai “Quando você pode começar a jogar futebol profissionalmente?”. Ele disse: “16 anos”. Eu disse: “Ok, 16 anos então, isso vai acontecer, ponto.

Deixa eu te dizer uma coisa – todo jogo que eu jogava era uma final. Quando eu jogava no parque era uma final. Quando eu jogava no intervalo do jardim de infância, era uma final. Eu estou falando isso muito sério.

Eu costumava arrancar o couro da bola toda vez que chutava. Força total. A gente não apertava R1, não, cara. Eu não tinha o novo FIFA. Não tinha Playstation. Eu não estava jogando por jogar. Eu estava tentando acabar com você.

Quando eu comecei a ficar alto, alguns professores e pais começavam a me irritar. Nunca vou esquecer da primeira vez que ouvi adultos falando para mim, “Ei, quantos anos você tem? Em que ano você nasceu?”.

Eu falava: “Sério? Você está falando sério?”.

Quando eu tinha 11 anos, estava jogando na base do Lièrse, e um dos pais do time adversário literalmente tentou me impedir de entrar no campo. Ele estava “Quantos anos esse garoto tem? Cadê a identidade dele? De onde ele é?”.

Eu pensei “De onde eu sou? Quê? Eu sou da Antuérpia. Eu sou da Bélgica”.


Meu pai não estava lá porque ele não tinha carro para me levar aos jogos fora de casa.

Eu estava sozinho e tinha que me defender sozinho. Eu fui, peguei minha identidade na mochila e mostrei a todos os pais presentes. Ele passavam meu documento um a um para inspecionar e lembro o sangue subindo à cabeça deles. Aí eu pensava:

“AH, EU VOU ACABAR COM O SEU FILHO AINDA MAIS AGORA. EU JÁ IA ACABAR COM ELE, MAS VOU ACABAR COM ELE AINDA MAIS. VOCÊ VAI LEVAR SEU FILHO CHORANDO PARA CASA”.

O maior arrependimento

Eu queria ser o melhor jogador da história da Bélgica. Aquele era meu objetivo. Não um jogador bom. Não um ótimo jogador. O melhor. Eu jogava com tanta raiva por causa de tanta coisa. Pelos ratos que entravam no nosso apartamento, porque eu não poderia assistir a Champions League, por causa de como os pais dos outros garotos me olhavam.
Eu tinha uma missão. Quando eu tinha 12 anos, marquei 76 gols em 34 jogos.

Eu marquei todos usando as chuteiras do meu pai. Quando nossos pés eram do mesmo tamanho, passamos a dividir. Um dia eu fui conversar com meu avô, o pai da minha mãe. Ele era uma das pessoas mais importantes da minha vida.

Ele era a minha relação com o Congo, país que meus pais nasceram. Então, um dia, eu liguei para ele e disse “Eu vou me dar bem. Marquei 76 gols e vencemos o campeonato. Os grandes times estão de olho em mim”. E, como sempre, ele falava que queria ouvir sobre o meu futebol. Mas dessa vez foi estranho. Ele disse: “Sim, Rom, que ótimo, mas você pode me fazer um favor?”.

Eu disse: “Claro, o que é?”

Ele falou: “Pode cuidar da minha filha, por favor?”

Eu lembro de estar muito confuso, pensando “o que o vovô tá falando?”.Eu falei: “Minha mãe? Estamos bem, está tudo bem”.

Ele disse: “Não, me prometa. Você pode me prometer? Cuida da minha filha por mim, ok?”

Eu falei: “Ok, vô, pode deixar. Eu prometo”.

Cinco dias depois, ele faleceu.

Aí eu entendi o que ele quis dizer.

Eu fico muito triste quando penso nisso porque eu queria que vivesse mais quatro anos para me ver jogar no Anderlecht. Para ver que eu cumpri minha promessa, sabe? Ver que tudo ia ficar bem.

Eu disse para a minha mãe que ia conseguir isso aos 16 anos. Eu errei a previsão por 11 dias.

24 de maio de 2009. A final entre Anderlecht e Standard Liège. Foi o dia mais louco da minha vida. Mas temos que voltar um minuto porque no começo da temporada, eu mal estava jogando pelo sub-19 do time.

Ele estava sempre me colocando para jogar saindo do banco de reservas. Eu ficava pensando “Como vou conseguir assinar meu contrato profissional no meu aniversário de 16 anos se sou reserva do sub-19 do time?”

Então eu apostei com o técnico. Eu disse a ele “Eu te prometo uma coisa. Se você me colocar para jogar, vou marcar 25 gols até dezembro”. Ele riu. Ele literalmente riu de mim.

Eu disse a ele: “Então faremos uma aposta”

Ele respondeu: “Ok, se você não fizer 25 gols até dezembro, você volta ao banco”.

Eu respondi a ele: “Tudo bem, mas se eu vencer, você vai mandar limpar as minivans que levam os jogadores do treino”.

Ele disse: “Ok, estamos em acordo”.

Eu ainda disse: “Ah, tem mais uma coisa. Você vai fazer panquecas para o time todo dia”.

Ele falou: “Ok, tudo bem”.

Aquela foi a aposta mais burra que aquele cara já fez. Eu marquei 25 gols e ainda estávamos em novembro. Nós estávamos comendo panquecas antes do Natal, cara. Que isso vire uma lição. Você não pode brincar com um garoto que está com fome!

Romelu Lukaku lembra do seu primeiro gol

Eu assinei meu contrato profissional no dia do meu aniversário, 13 de maio. Fui direto comprar o novo Fifa e um pacote de TV paga.

Já era o final da temporada então eu estava tranquilo em casa. Mas o Campeonato Belga estava louco naquele ano porque Anderlecht e Standard Liège terminaram a competição com a mesma pontuação. Então, precisaram de dois jogos para definir o campeão.

No primeiro jogo, eu estava em campo vendo TV como um torcedor. Um dia antes da segunda partida, eu recebo uma ligação do técnico do time reserva.

“Alô?”

“Oi, Lukaku, o que você está fazendo?”

“Vou jogar bola no parque”.

“Não, não, não, arrume suas coisa. Agora mesmo”

“O que? O que eu fiz?”

“Não, não, não, você precisa vir ao estádio agora. O time principal precisa de você agora”.

“Cara… que?! Eu?!”

“É, você mesmo. Venha pra cá agora”

Eu simplesmente corri para o quarto do meu pai e estava como “Cara, vem para cá agora, você tem que vir”.

Ele disse: “O quê? Onde? Ir para que lugar?”

Eu disse: “ANDERLECHT, CARA”

Eu nunca vou esquecer, eu apareci no estádio e corri para o vestiário. O roupeiro me perguntou: “E aí, garoto, qual número você quer?”

Eu disse: “Me dá o número 10”.

O roupeiro disse: “Ok, garoto, que número você quer?”. Eu voltei a responder: “Me dá a 10”. Hahahaha Eu não sei, eu era muito novo para ficar assustado.

Ele disse: “Jogadores da base precisam escolher números acima de 30”.

Eu disse: “Ok, bem, 3 + 6 = 9. Esse é um número legal, então me dá a 36”.

Naquela noite no hotel, os jogadores mais velhos me fizeram cantar uma música para eles no jantar. Eu não lembro qual escolhi. Minha cabeça estava girando.

Na manhã seguinte, meu amigo bateu na porta da minha casa para saber se eu queria jogar futebol com ele, e a minha mãe respondeu. “Ele saiu para jogar”.

“Jogar onde?”

Minha mãe respondeu: “A final”.
Nós saímos do ônibus para o estádio, e cada jogador entrava com uma roupa muito legal. Menos eu. Eu saí do ônibus com uma roupa horrível, e todas as câmeras de TV filmavam meu rosto.

O caminho até o vestiário era de 300 metros. Quando eu coloquei meu pé no vestiário, meu telefone começou a tocar sem parar. Todos me viram na TV. Eu tive 25 mensagens em 3 minutos. Meus amigos estavam loucos.

“Cara! VOCÊ ESTÁ NO JOGO?!””Lukaku, o que está acontecendo? Por que você está na TV?”

A única pessoa que eu respondi foi meu melhor amigo. Eu disse “Cara, eu não sei se vou jogar. Eu não sei o que está acontecendo. Mas fica ligado na TV”.

No minuto 63, o técnico me colocou no jogo. Eu entrei no gramado pela primeira vez como jogador profissional do Anderlecht aos 16 anos e 11 dias.

Nós perdemos a final aquele dia, mas eu estava no paraíso. Eu cumpri minha promessa com minha mãe e meu avô. Aquele foi o momento em que eu soube que tudo ia ficar bem.


A temporada seguinte eu estava terminando o último ano do colégio e jogando a Europa League ao mesmo tempo. Eu levava uma mochila grande para a escola para poder pegar um voo à tarde. Nós vencemos o campeonato com folga, e eu terminei em segundo como o melhor jogador africano do ano. Aquilo foi…loucura.

Eu realmente esperava que tudo isso ia acontecer, mas talvez não tão rápido. De uma hora para outra, a mídia estava falando de mim e colocando todas essas expectativas sobre mim. Especialmente em relação à seleção belga. Não sei por qual razão, mas eu não estava jogando bem pela Bélgica. Não estava dando certo.

Mas, cara, vamos lá. Eu tinha 17! 18! 19!

Quando as coisas estavam caminhando bem, eu li as reportagens dos jornais e eles estavam me chamando de Romelu Lukaku, o atacante belga.

Quando as coisas não estavam bem, eles me chamavam de Romelu Lukaku, o atacante belga de origem congolesa.

Se você não gosta do jeito que eu jogo, tudo bem. Mas eu nasci na Bélgica. Eu cresci na Antuérpia, Liège e Bruxelas. Eu sonhei em jogar pelo Anderlecht. Eu sonhei em ser Vincent Kompany. Eu consigo começar uma frase em francês e terminar em holandês, e posso jogar umas palavras em espanhol ou português ou Lingala, dependendo do bairro onde eu estava.

Eu sou belga.

Todos somos belgas. É isso que faz esse país legal, sabe?

Eu não sei porque algumas pessoas no meu país querem me ver fracassar. Eu não sei mesmo. Quando eu fui para o Chelsea eu não estava jogando e ouvia rirem de mim. Quando eu fui emprestado ao West Brom, eu ouvi rirem de mim.

Mas tudo bem. Aquelas pessoas não estavam comigo quando a minha família estava colocando água no meu cereal. Se você não estava comigo quando eu não tinha nada, então você não pode me entender.

Você sabe o que é engraçado? Eu perdi 10 anos de Champions League quando criança. Não podíamos pagar. Eu ia para a escola e as crianças falavam da final, e eu não tinha ideia do que tinha acontecido. Lembro que, em 2002, o Real Madrid enfrentou o Bayer Leverkusen, e todos estavam reagindo: “Nossa, aquele voleio! Meu deus, aquele voleio”

Eu tinha que fingir que estava tudo bem.

Duas semanas depois, estávamos na sala de computadores da escola, e um dos meus amigos baixou um vídeo da Internet, e eu finalmente pude ver o voleio de Zidane com a perna esquerda.

Naquele verão, eu fui até a casa dele para ver o Ronaldo Fenômeno jogar a final da Copa do Mundo. Tudo o que aconteceu antes no Mundial eu só tinha ouvido dos garotos e garotas da escola.

Hahaha, eu lembro que tinham grandes buracos nos meus tênis em 2002. Grandes buracos.

Doze anos depois, eu ESTAVA na Copa do Mundo.


Agora vou jogar outra Copa do Mundo, e meu irmão Jordan Lukaku está comigo dessa vez. Dois garotos da mesma casa, da mesma situação adversa e que conseguiram superar.

Você quer saber? Eu vou lembrar de me divertir dessa vez. A vida é muito curta para estresse e drama. As pessoas podem dizer o que quiser sobre o nosso time e eu.

Cara, me escuta – quando éramos crianças, não podíamos ver Thierry Henry no programa Match of the Day. Agora estamos aprendendo com ele, que faz parte da comissão técnica da Bélgica.

Eu estou com uma lenda e ele está me ensinando a correr no espaço como ele mesmo fazia.

Ele pode ser o único cara do mundo que assiste mais futebol que eu. Nós falamos sobre tudo. Nós estamos juntos falando sobre a Segunda Divisão da Alemanha.

“Thierry, você viu o Fortuna Düsseldorf?”

“Claro, Rom, não seja bobo, eu vi sim”.

Essa é a coisa mais legal do mundo para mim.

Eu gostaria muito, muito mesmo, que meu avô pudesse testemunhar isso.

Não estou falando de jogar a Premier League. No Manchester United. Jogar a Champions League. A Copa do Mundo.

Não é isso que eu falo. Eu só gostaria que ele estivesse aqui para ver a vida que temos agora. Eu gostaria de ter mais um telefonema com ele e eu poderia dizer…

“VIU? EU TE DISSE. SUA FILHA ESTÁ BEM. NADA DE RATOS NO NOSSO APARTAMENTO. NADA DE DORMIR NO CHÃO. NADA DE PREOCUPAÇÃO. ESTAMOS BEM AGORA. ESTAMOS BEM…ELES NÃO PRECISAM CHECAR MEUS DOCUMENTOS AGORA. AGORA, ELES SABEM MEU NOME”.

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