Um oásis no meio do inferno
Voluntário difunde método de prisões humanizadas exportado para 19 países
Renato Stockler/Folhapress
Os termômetros marcam 35°C numa tarde de agosto em Timon, interior do Maranhão. Indiferentes ao calor, 50 homens condenados por crimes tão diversos quanto homicídio, roubo, estupro e tráfico de drogas entoam um hino, a plenos pulmões.
"Tire essa algema da mente, levante a cabeça e siga em frente. Diferente de antes, me sinto um humano, capaz de aprender a amar. Abra sua mente e ouça o que diz essa canção. Na Apac eu tive minha última chance. Estou em recuperação."
A cantoria celebra a entrega de diplomas de cursos profissionalizantes concluídos pelos presos da Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (Apac), onde cumprem pena numa rotina rígida de palestras, cursos e jornada de trabalho.
O local não tem armas nem policiais ou carcereiros, e são os próprios internos, ali chamados de recuperandos, que guardam as chaves das celas.
Sentados diante do coral, o juiz de execuções penais, o promotor e os defensores públicos da cidade batem palmas no ritmo da música, ao lado do mineiro Valdeci Ferreira, 55, o grande artífice daquela cena.
Há 33 anos, Ferreira adotou a recuperação de criminosos como missão de vida. Sua devoção, que ele atribui a um chamado divino, multiplicou as Apacs, de uma unidade para 48, espalhadas por cinco Estados do país, que reúnem cerca de 3.500 recuperando. Elas são coordenadas pela Fbac (federação das Apacs), entidade que criou para disseminar e fiscalizar uma metodologia inovadora de humanização do sistema prisional.
Na cerimônia de Timon, os olhos satisfeitos de Ferreira ficam especialmente interessados nos 11 homens que ocupam, um tanto perplexos, o último banco do salão apinhado.
Eles haviam acabado de ser transferidos da penitenciária local. E o contraste não poderia ser maior.
Horas antes, ocupavam celas lotadas e insalubres, numa rotina de ócio, drogas, tensão e hostilidade entre facções.
Foi essa combinação perversa que fez o Estado do Maranhão chocar o país em 2013, quando 62 presos foram brutalmente executados no presídio de Pedrinhas (MA), muitos deles decapitados. O episódio, de repercussão internacional, seria o prenúncio de outras barbáries e crises do sistema penitenciário nacional, o quarto maior do mundo.
"Os presídios são desertos de miséria e sofrimento. O Estado está ausente, e as facções ocupam este espaço. A sociedade, ferida por essas pessoas, esquece que aqueles abandonados atrás das grades uma hora voltam para o convívio social, e voltam piores", alerta Ferreira.
As Apacs são pequenos oásis. "Aplicamos a pedagogia da presença e caminhamos junto com aquele que cometeu o delito, oferecendo uma chance de mudança de vida", explica, entre as grades ali usadas também como suporte para vasos de plantas.
O CHAMADO
Presenciar a chegada de novos recuperandos é uma emoção que sempre remete ao impacto da primeira vez que o presidente da Fbac colocou os pés em uma cadeia e que mudaria sua vida para sempre.
Criado em uma família religiosa e envolvido em obras sociais da Igreja Católica, o metalúrgico de 21 anos vivia em Itaúna (MG), onde conseguira emprego para ajudar os pais a construírem a casa própria.
Nas horas vagas, escrevia e encenava peças de teatro amador em asilos, creches e hospitais. Numa dessas apresentações, foi convidado por um grupo cristão de jovens para visitar a cadeia local.
"O lugar era escuro, o cheiro era forte. Não tinha pátio para banho de sol, e os presos ficavam atrás das grades durante a visita, sem poder abraçar seus parentes", lembra.
A penumbra das celas aos poucos revelou rostos imberbes como o dele. "Só que eram jovens desfigurados, tristes e sem esperança. Pessoas apodrecendo em vida. Aquilo tudo me impactou profundamente."
Com misto de incômodo e impotência, na manhã seguinte, como de hábito, Ferreira abriu a Bíblia aleatoriamente em busca de uma mensagem para o dia. Era Mateus 25:36, onde se lia: "Estive na prisão e fostes me ver". No outro dia, deu Hebreus 13:3: "Lembrai-vos dos presos como se estivésseis presos com eles". E no dia seguinte, e no outro e no outro, sempre passagens com referências a presos e ao cárcere.
"Achei que estava ficando louco. Ou seria Deus falando comigo? Eu dizia: 'Deus, eu não dou conta desse desafio, não.'"
Perturbado, ele resolveu procurar o padre. "Abrimos a Bíblia juntos e veio Mateus 25:43, que diz 'enfermo e na prisão, não me visitastes'. Entendi que era mesmo um chamado. E desde então não fiz mais nada na vida a não ser cuidar de preso."
RESISTÊNCIA
Ferreira encontrou resistência ao trabalho com detentos por todo lado, inclusive em família. Traumatizados pela violência sexual sofrida por uma de suas irmãs aos seis anos de idade, os parentes não toleravam sua dedicação aos presos.
"Uma imagem que marcou a minha infância foi a de meu pai percorrendo a cidade de noite com um porrete na mão atrás daquele que havia machucado a minha irmã", recorda-se.
Ao longo dos anos, ele receberia ameaças de morte recorrentes e respondeu a 17 ações judiciais movidas pelo Ministério Público mineiro, questionando a sua atuação a favor dos encarcerados. "Eu me tornei advogado para poder me defender dessas perseguições", relata. "Tive todos os motivos para abandonar o barco. Mas nada me demoveu da minha crença inabalável na recuperação do ser humano."
RENÚNCIA
Testemunhos não faltam. E Daniel Luiz, 33, é um dos muitos garotos-propaganda do método baseado em 12 elementos.
Líder de uma gangue, o mineiro de São João del Rei respondeu a 27 processos e foi condenado a 37 anos de cadeia por homicídios e assaltos a banco. "Tenho ciência dos crimes que cometi e das vidas que não posso trazer de volta. Então, o melhor que eu pude fazer foi me tornar um pai de família, um trabalhador e um pagador de impostos", diz. "A estrutura e o método da Apac me deram essa oportunidade."
Hoje, Daniel é inspetor da Fbac, e acompanhou o chefe à Itália -uma das 30 viagens que Ferreira fez ao exterior para apresentar seu trabalho. "O mundo quer saber como funcionam essas engrenagens."
A ausência de rebeliões, violência ou mortes, a redução das fugas e do custo por preso e a diminuição dos índices de reincidência de 85% (média do sistema prisional comum) para entre 20% e 28% tornaram o método um produto de exportação brasileiro.
Hoje, há Apacs em 19 países das Américas, Europa e Ásia, e são raros os meses em que Ferreira não receba delegações estrangeiras.
Em matéria de prestígio internacional, no entanto, nada vai superar o fato de ele ter sido recebido pelo papa Francisco, a quem entregou prendas produzidas pelos recuperandos. "Foi muito emocionante."
Lépido e risonho, de gestos firmes e olhar decidido, Ferreira se casou com as Apacs desde que conheceu a primeira em São José dos Campos (SP), fundada em 1972 pelo advogado Mário Ottoboni, 74, e que já não existe mais.
Não foi pequeno o preço cobrado pela renúncia pessoal para se tornar o discípulo desta filosofia. "Nunca mais tive emprego formal, e devo terminar meus dias em algum asilo. Meu patrimônio é o mesmo de 33 anos atrás. E passei mais tempo com os presos que com meus próprios pais e irmãos", diz o empreendedor social, que criou uma espécie de franquia de unidades prisionais humanizadas.
"Com isso, acabei abdicando da expectativa de constituir uma família e de ter filhos biológicos", completa, com a voz embargada. "Só que minha missão tem muitos méritos: quando ajudamos alguém a se levantar, nós somos e seremos os grandes beneficiários." E alguns dos filhos pródigos de Ferreira, naquela tarde no Maranhão, encenaram a parábola bíblica que melhor descreve a sua luta.
Fonte: Folha
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