Sempre acredite, nunca desista!

De origem humilde, cientista brasileira se tornou PhD em Química

Joana D’Arc de Souza, que se formou em Harvard, chegou a passar fome; hoje faz pesquisas de ponta e tem 15 patentes registradas

À direita, Joana Félix em seu trabalho no laboratório: pele artificial para queimaduras, colágeno para osteoporose, fertilizantes e filtragem com escamas de peixe - Lindomar Cailton / Divulgação/

FRANCA - A fala doce, baixinha e de sotaque carregado já dá a pista. Aquela mulher de aparência frágil, de não muito mais que um metro e meio de altura tem o dom de contornar obstáculos. De família pobre de Franca, no interior de São Paulo, a professora de Química Joana D’Arc Felix de Souza, de 53 anos, estudou em apostilas emprestadas e, muitas vezes, dormiu com fome quando morava em Campinas, onde fez graduação, doutorado e mestrado na Unicamp. De lá, partiu para os Estados Unidos, onde concluiu o pós-doutorado na Universidade de Harvard. A vida lhe pregou uma peça, e ela precisou voltar ao Brasil, onde, desde 2004, faz pesquisa de ponta com alunos do ensino médio na Escola Agrícola de sua cidade natal. De lá para cá, em parceria com os estudantes, ela registrou 15 patentes nacionais e internacionais.

Essa história surpreendente começou quando Joana tinha apenas 4 anos e acompanhava a mãe, empregada doméstica, ao trabalho.

— Tive a oportunidade de começar a estudar bem cedo porque minha mãe era empregada doméstica — diz ela.

Se você procura alguma lógica nessa frase, esqueça. Poucas coisas na vida de Joana seguem o rumo “esperado”.

— Para eu ficar quietinha, minha mãe me ensinou a ler o jornal que chegava à casa. Eu tinha uns 3 anos. Um dia, a patroa da minha mãe, que era diretora de uma escola do Sesi, me viu com o jornal e perguntou se eu estava vendo as figurinhas. Eu falei que estava lendo — conta.

A patroa da mãe deu um texto para Joana ler. Impressionada, pediu autorização para a pequena frequentar a escola por uma semana. Se ela acompanhasse, ganharia a vaga.

— E deu certo. Eu comecei a 1ª série do ensino fundamental com 4 anos. Sem estudo, minha mãe foi minha primeira professora. Ela tinha até a 4ª série do primário. E meu pai, a 5ª série — conta.

Joana concluiu o ensino médio e decidiu que faria Química.

— Minha família morava numa casa no curtume em que meu pai trabalhava. O químico do curtume usava um jaleco branco. Desde pequena, eu era apaixonada por aquele jaleco e dizia: “Quero usar um desses”. No 3º ano do ensino médio, uma professora explicou o que era o vestibular e ofereceu apostilas de cursinho. Passei para Química nas três estaduais de São Paulo: Unicamp, USP e Unesp.

Lembranças de tempos difíceis
Joana escolheu a Unicamp, em Campinas. Com a ajuda do pai e do patrão dele, foi morar num pensionato. O dinheiro era contado para o transporte e uma refeição ao dia no bandejão da universidade.

— Eu guardava o pãozinho para ser o meu jantar. Às sextas, pedia mais pães para o fim de semana. Eu via as meninas comprando sorvete e pensava: “Um dia, eu também vou conseguir”.

Joana conta sobre essa fase da sua vida sem nenhum traço de amargura:

— Passei fome, mas decidi que ia vencer pelos estudos. Meu pai sempre dizia: para atingir seus objetivos, tem que passar pelo sacrifício. A gente que não nasceu em berço de ouro tem que arregaçar as mangas. Se você desistir, nunca vai chegar lá.

E ela chegou. Ao terminar o doutorado na Unicamp, recebeu um convite para fazer pós-doutorado em Harvard. Seu orientador sugeriu que ela levasse um produto nacional para estudar. O pai deu a ideia de trabalhar com resíduos do curtume, um passivo ambiental importante para Franca, a capital do calçado. A indústria coureira local gera 218 toneladas de resíduos por dia.

Joana estudou inglês em livros com CDs vendidos em bancas de jornal e partiu para Boston. Desde então, os resíduos de curtume são sua matéria-prima. A partir dessa lama, desenvolveu uma pele artificial para ser usada em queimaduras; colágeno para o tratamento de osteoporose e osteoartrite; cimento ósseo para reconstituir fraturas; fertilizantes; um sistema de filtragem com escamas de peixe e várias tecnologias que já estão sendo transferidas para a indústria. Mas toda essa produção não teve os laboratórios de Harvard como pano de fundo, e sim bancadas simples de cimento no curso técnico de curtimento da Escola Agrícola de Franca, do qual Joana é coordenadora.

— Minha intenção era terminar o pós-doutorado e ficar nos Estados Unidos. Mas, quando estava com um ano e meio de curso, minha irmã morreu. Um mês depois, meu pai também teve um enfarte fulminante. E minha mãe ficou com meus quatro sobrinhos, então com 2 meses, 1, 3 e 4 anos. Terminei o curso e, em 1999, voltei ao Brasil para ajudar minha mãe, que estava doente. Perdi o chão.

Joana passou a ser assessora científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e fez concurso para professora na Escola Agrícola Técnica Professor Carmelino Corrêa Júnior, onde a maioria dos alunos é como ela, de origem humilde. Sua chegada revolucionou o colégio. Com bolsas da Fapesp, implantou a iniciação científica, o que melhorou a estrutura dos laboratórios.

— Ela tem o dom de ser uma cientista extraordinária e agregar as pessoas no desenvolvimento da ciência. Com toda a sua simplicidade, envolve os alunos e os instiga a buscar soluções para problemas reais, por meio da química — diz o diretor da escola, o professor Cláudio Ribeiro Sandoval, de 61 anos.

A pedagoga Roberta Real Suaroz, de 33 anos, uma das bolsistas de iniciação científica de Joana na Escola Agrícola, guarda na memória a paciência e a persistência da professora:

— Nunca a vi perder a calma. Meu projeto com pele de jacaré não dava certo e ela dizia: “Você tem que fazer dar certo e, se tiver que tentar mil vezes, faça mil vezes”.

Além das 15 patentes, Joana desenvolve cerca de 20 projetos.

— Com uma aluna de 14 anos, começamos a pesquisar um tecido antimicrobiano para combater infecção hospitalar. Este ano, pela segunda vez, fomos apresentar projetos premiados na Genius Olympiad, em Nova York. — Não é necessário estar numa universidade para desenvolver pesquisa de ponta.

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